terça-feira, 17 de setembro de 2013

Religiosidade Popular: fenômeno, mística e o símbolo


Resumo:

Nosso trabalho busca refletir sobre alguns aspectos no que diz respeito à religiosidade popular, como ela se estrutura sua relação com a instituição e o “resignificado” que ela recebe do povo. Tomando como elemento importante a questão do “fenômeno”, suas particularidades, além da questão simbólica que o mesmo envolve. Sendo o homem um ser aberto ao sagrado ele faz de sua realidade social algo presente nessa realidade, bem como a mística, que é essencial, acaba que, envolvendo toda essa relação.

 

Summary


Our work aims to reflect on some aspects regarding the popular religiosity, as it structures its relationship with the institution and "resignificado" she receives from people. Taking as an important issue of the "phenomenon", its peculiarities, beyond the symbolic issue that it involves. Since man is a being open to the sacred he does something this social reality in this reality and mysticism, which is essentially just that, involving all this respect

Palavras-chave: Religiosidade Popular, Fenômeno, Símbolo e Mística.

Keywords: Popular Religiosity, Phenomenon, Symbol and Mystic.

 

Introdução

 

            A principio é importante destacar que existe uma tendência a um continuísmo por parte dos historiadores quando o assunto é religiosidade popular, bem como um etnocentrismo que coloca em questão tais práticas não como religião e sim como religiosidade popular. Com isso corremos o risco de um reducionismo do fenômeno religioso, quando fazemos essa análise da religião em relação às conjunturas sociais. Quando falamos dessa forma estamos reduzindo a religião a simplesmente a sua dimensão institucional e com isso estamos privando-a de seu caráter fenomenológico[1].

O popular é aquele, não ordenado, não funcionário do sagrado, mas que vive intensamente as ideias religiosas e com isso, torna suas práticas comuns no meio da comunidade. Ele não precisa de autorização ou mesmo de uma insígnia para que sua autoridade seja reconhecida perante sua comunidade. E visto nessa prática seu valor utilitário e prático. Existe uma prestação de serviços locais que integram essas práticas a vida do povo. Seu imaginário parte da premissa que existe um criador de tudo e todos e que a existência é em função de alguma coisa, ou seja, que ela faz sentido. Além de nomear as coisas ás tornam sacras, bem como o incrível passa a ser possível em uma determinada ordem de valores e elementos místicos.

A religião popular permite que o povo expresse sua interioridade em gestos coletivos, rituais espontâneos que fazem com que o povo se expresse sua criatividade. Não é algo limitado ou mesmo enquadrado em “cânones ou liturgias” [2]. Essa religião rompe com as ideologias dominantes das estruturas sociais na medida em que tira o povo do anonimato, suas liturgias são em função de resignificações próprias e não para justificar ordens estabelecidas. Como a mesma não está sob o controle da igreja oficial, mesmo tendo sua essência teológica, faz com que o povo seja protagonista de sua própria fé. O povo, por meio de símbolos, acaba resignificando todo um arcabouço de ideias. Isso significa dizer que, em essência, a religião transcende as realidades puramente aparentes e palpáveis, em outras palavras:

“E isso vem exemplificar, mais uma vez, quanto à primeira perspectiva se fundamenta em uma – constrói seu objeto, a religião, enquanto – essência não falsificável, na medida em que a segunda se verifica, exatamente, em uma constante falsificabiliadede seu objeto (a religião).” (AGNOLIN, 2012, p.190).

 

A religião acaba trazendo para si uma responsabilidade ética e moral. Ela faz com que, homens e mulheres, adotem padrões comportamentais, de acordo com seus ditames bem como fomenta uma “relação pessoal” do homem como o sagrado, ou mesmo faz com que o mesmo passe a ter uma sensibilidade para o metafísico. A ideia de mística se dá nesse contexto: a relação do homem com esse “princípio metafísico”. Diríamos que o itinerário espiritual dele é a mística[3]. É esse aspecto que faz a diferença e reafirma o seu pertencimento, não há uma religião, mas sim a uma crença. Nas palavras de Faustino Teixeira:

“As tradições religiosas encontram, certamente, na mística a sua dimensão de gratuidade e de provocação permanente à abertura. Os místicos são aqueles que conseguem captar a dimensão de profundidade presente na vida e reconhecer o outro lado das coisas. Em razão de sua experiência de proximidade ao mistério, consegue com facilidade mover-se e comungar para além das fronteiras de sua inserção particular.” (TEIXEIRA, 2004, p.27).

 

                Não há necessariamente uma relação direta com a instituição. Esses personagens fazem a ponte entre as pessoas e o sagrado através de sua experiência própria, daí ele mesmo ser um símbolo vivo da mensagem que anuncia. Vamos entender símbolo aqui como a união entre duas coisas: o visível – mundo dos sentidos, e o invisível, aquilo que seria metafísico.

            Isso para dizer que a religião dá conta de todas essas realidades: seja da essência da coisa em si, de como ela se manifesta, onde percebo sinais dela, bem como daqueles que são “portadores” vivos dessa realidade que só percebo por minha intuição ou mesmo por alguma faculdade intelectiva.

O Fenômeno

 

            Todos os povos tem uma experiência religiosa ou tiveram. Essa experiência é a manifestação interna que é colocada em evidencia na sociedade, seja por uma prática de conduta seja por expressões culturais: seja por meio do símbolo, seja por meio da linguagem. Isso significa dizer que, são experiências humanas.

“Como toda experiência humana, ela também tende à comunicação e à socialização. Precisa ‘ser dita’; daí tantos caminhos para realiza-la.

O itinerário desde a experiência do sagrado até sua manifestação múltipla é o que faz o homureligiosus; o inverso, que parte das expressões religiosas e vai até sua intensão e origem, é o caminho feito pelo estudioso. Daí o nome de ‘fenomenologia da religião’, essa classe de análise que vai dos testemunhos (os fenômenos) até sua fonte geradora.” (CROATTO, 2010, p.9).

 

            Situar o fenômeno dentro da religião e fora dela, é ter a certeza de que ele é parte integrante da própria condição humana. Ele é o que está para além das aparências e das normas estabelecidas. É algo que está para além das formalidades e das convenções. Para que isso ocorra é necessário entender que a religião tem um caráter social e global, bem como real e significativo na sociedade. É aglutinadora e ao mesmo tempo separatista. Varia de acordo com a realidade social onde se apresenta e sua linha teológica[4]. Esse aspecto – do fenômeno – não vai bem em nossos dias, consequência do pragmatismo de nossa sociedade, bem como do esvaziamento, o objeto religioso perde seu valor.

 

“Ao meu ver, a Fenomenologia da Religião está em crise graças à hipertrofia interpretativa que está na base de sua implosão teórica, e sobretudo  por sua obstinada recusa ao processo de falsificação, o que provocou seu esvaziamento. Como foi acenado no início, de um lado, a explosão social e política das grandes religiões esvaziou o objeto religioso, a sacralidade no seu valor originário.” (PASSOS, USARSKI, 2013.p. 95)

 

            Reconhecer esse aspecto é, sobretudo, afirmar sua existência e importância em toda constituição religiosa. Aspecto esse tão bem apreendido pela religiosidade popular, que reconhece nele sua legitimidade para crer e reconhecer sua dimensão mística e real. Indo na contra mão dos sistemas institucionais o homem reconhecer no fenômeno suas motivações para afirmar suas crenças diante de tudo e todos.

A mística

 

            Tudo aquilo que percebo do fenômeno e consigo reproduzir em minha vida, pode ser considerado como mística. Quando consigo perceber atributos e percebendo-os sou capaz de resignificá-los ou mesmo de reproduzi-los isso já pode ser considerado mística. Levando os outros a terem uma “experiência” com o fenômeno sou capaz por esse meio de aproximar duas realidades, a saber, a visível e a invisível. Tornando o homem, por tal experiência, desapegado – ou mesmo desinteressado – das realidades materiais, pra não dizer, mundanas.

“Em síntese, a experiência mística provoca necessariamente um aprofundamento de si, um despojamento e desapego que impulsionam o sujeito para a dinâmica da alteridade. Não é fácil atingir tal desapego. Trata-se de um processo lento, complexo e permanente, que faz brotar uma atitude de total abertura.” (TEIXEIRA, 2004, p.30).

 

            Algumas figuras importantes podem ser citadas como exemplos de místicos que, com sua prática de vida foram influenciadores de movimentos, bem como de expressões da religiosidade popular, aja vista um Antônio Conselheiro no Sertão baiano, foi capaz de arrebanhar milhares em torno de seu “Arraial de Belo Monte” e com um “devocionismo” e uma releitura de práticas católicas, ser exemplo de liderança e de homem místico que, à frente de um movimento tipicamente messiânico, trazia esperança e a promessa de um mundo melhor para aquele povo sofrido e castigado por uma situação de miséria e seca. É a sua experiência pessoal que alimenta o movimento e se irradia para construir um novo momento para aquele povo. Quando o Arraial é construído ergue-se primeiro a Igreja e o Cemitério. As práticas das rezas eram constantes e a devoção a virgem Maria era diária com a recitação do terço em comunidade. Sua mística, vai no sentido contrário da instituição, que inclusive condena o movimento, mas é esse sentimento – mística – e o carisma do líder, que faz com que cause tanto “transtorno e incomode” o Estado e a Igreja, ao ponto de anularem o mesmo de forma trágica e sem piedade. Como ele poderíamos enumerar vários outros: São João da Cruz, Santa Terezinha, Padre Cícero, Frei Damião, entre outros, que, nos ajudam a refletir sobre o papel e a diferença que esses homens e mulheres, imbuídos de um “espirito reformador” e com características místicas alimentaram e alimentam o sentimento de uma religiosidade popular e um devocionismo no meio do povo.

                                                          

O Símbolo

            Podemos dizer que o símbolo é a linguagem formal que expressa o sagrado, é uma representação visível de algo que não posso ver. É a linguagem fundante da religião, é por meio dele que a “transcendência” pode ser percebida em sua forma palpável, visível.

“Por sua etimologia (do grego sum-ballo, ou sympballo), o símbolo refere-se a união de duas coisas. Era um costume grego que, ao se fazer um contrato, fosse quebrado em duas partes de um objeto de cerâmica, então cada pessoa levava um dos pedaços. Uma reclamação posterior ela legitimada pela reconstrução (“pôr junto” = symballo) da cerâmica destruída, cujas metades deveriam coincidir. A união das partes permitia reconhecer que a amizade permanecia intacta.” (CROTTO, 2010, 84-85).

 

                É a ideia que o símbolo une duas realidades separadas que, ao mesmo tempo se completam e fazem parte de uma mesma estrutura fenomenológica. Por si só ele é capaz de conduzir o homem a uma experiência que foge do cotidiano. Faz com que ele possa vivenciar as várias categorias hierofânicas[5] do sagrado. O símbolo religioso pode ser tido como uma forma de experiência da realidade, ou seja, ele, de certa forma sacraliza o que está a sua volta dando-lhe um sentido supra-natural. Ele acrescenta um novo valor. Pode ser algo concreto: uma imagem de um santo, um amuleto, um local sagrado (santuário de peregrinação), como um ritual (benzer um objeto, as novenas marianas no interior[6], onde sem clérigos o povo reza e manifesta sua fé), enfim, o símbolo dá o que falar.

“[...] teríamos que repetir que o mundo da religião é o mundo do símbolo. O homem religioso percebe a ‘fala’ ou a ‘revelação’ do mistério da realidade por meio de símbolos. A realidade em sua profundidade, não se manifesta em linguagem direta”. (MARDONES, 2006, p.89).

 

            É um momento significativo quando alguém, imbuído de um sentimento religioso reproduzir todo um sistema simbólico em seu cotidiano e é influenciado pelo mesmo. Isso remete o papel fundante do símbolo, quando ele acaba assumindo uma função social, na medida em que interfere e modifica a própria realidade.

           

Considerações finais

            A religiosidade popular, mesmo que passando por uma crise fenomenológica, tem se mostrado firme e cada dia mais presente em nossa sociedade. Com todos os hibridismos ela vem sobrevivendo e resignificando cada dia mais os processos que envolvem o sagrado: rito, símbolo, mística, enfim, todas as categorias hermenêuticas que a justificam ou mesmo que as alimentam. É importante destacar que, no aspecto de sua fenomenologia a religiosidade popular se distancia dos aspectos institucionais, pois sua essência é percebida pela capacidade de abstração do indivíduo e sua consciência e relação com aquilo que ele acredita ser “o sagrado”. O nosso povo brasileiro, herdeiro de uma miscigenação étnica e cultural, acaba por absorver e reproduzi elementos oriundos dessa herança. Daí uma propensa inclinação para o desenvolvimento de um cenário ideal para a “religiosidade popular”.

Elementos dessa religiosidade, como a mística, são fundamentais para que essas manifestações não acabem. Quando o povo, por meio de líderes, ou mesmo pessoas que se destacam por um “pietismo” ou por uma conduta que é identificada como “santa” (só pra lembrar a figura dos beatos) encontram nesses exemplos elementos necessários para serem reproduzidos e resignificados. Fazendo com que sejam passadas à diante essas práticas. Esse sentimento de simplicidade, que a mística somada ao símbolo conduz o “homem simples” a uma vivência de da experiência religiosa em sua plena transcendência. Bem como sua abertura para o sendo do mistério.

 

 

Bibliografia:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1992.

AGNOLIN, Adone. História das Religiões: Perspectivas histórico-comparativa, São Paulo: Paulinas, 2013.

CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma introdução à fenomenologia da religião, São Paulo: Paulinas, 2010.

MARDONES, José Maria. A vida dos Símbolos: A dimensão simbólica da religião, São Paulo: Paulinas, 2006.

REALE, Giovanne. História da Filosofia, Volume V. São Paulo: Loyola, 1999.

STEIL, Carlos Alberto. O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1996.

TEIXEIRA, Faustino. Meneses, Renata (Orgs.) As Religiões do Brasil: continuidades e rupturas, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2006.

TEIXEIRA, Faustino. Meneses, Renata (Orgs.). Catolicismo Plural: Dinâmicas Contemporâneas, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.

TEIXEIRA, Faustino.No Limiar do Mistério – Mística e Religião, São Paulo: Paulinas, 2004.

PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (Org.). Compêndio de Ciência das Religiões, São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013.

 

 

 

 

 

 



[1]Estamos aqui usando o termo fenomenologia como foi utilizado por Hussel em Investigações Lógicas (1900-1901) onde ele fala da fenomenologia tratando da essência como uma categoria hermenêutica de um “objeto real”. Ou seja, quando falo do caráter fenomenológico da religião me refiro àessência de suas manifestações.
[2]O que não significa que ela é feita de todo jeito, quando falamos que não segue um Cânone ou liturgia estamos falando dos moldes oficiais da Igreja romana.
[3] Aqui entendemos esse termo como é destacado por Reale:“O termo deriva de mystikós, que significa o que está em conexão com os mistérios. Só na antiguidade tardia, porém, aparece a expressão mystiképarádosis, para indicar a doutrina mística, que mostra ao homem como destacar-se do sensível e alcançar o Absoluto, até assimilar-se e unir-se a Ele”.
[4] Não quero com isso dizer que ela tem um caráter flexível por demais ou mesmo que não tenha uma identidade própria. Contudo é importante destacar que a religião e mais especificamente, sua manifestação popular, é algo que vai tomando forma e fazendo seus hibridismos de acordo com cada época e lugar.
[5]Aqui uso o sentido da palavra como “manifestação do sagrado” (revelação).
[6] No mês de maio é “tradição” as novenas rezadas nas casas pelas próprias pessoas sem a presença do clero. Expressa a fé e a religiosidade popular que une as pessoas e garante a transmissão desse costume. Cada noite o alta é ornado com flores e as flores murchas de todas as noites são queimadas em uma fogueira na última noite do mês, noite esse que ocorre uma “coroação simbólica” da imagem de Maria mãe de Jesus Cristo (Nossa senhora Imaculada Conceição).